“Eu tô aqui Propriá/ você tá lá, Propriá/ peça ao seu Pedro Chaves/ para mandar me buscar” (Clemilda)
Texto: Luiz Antônio Barreto serigysite@infonet.com.br
Foto: Janaína Cruz
A velha Freguesia de Santo Antônio do Urubu do Baixo Rio São Francisco, conhecida simplesmente por Urubu de Baixo, ergueu seus sobrados, ícones do fausto que, por algum tempo, tingiu a vida propriaense. Quem lança um olhar sobre a cidade, desde a margem do Velho Chico, reconstitui as moradas, os sobrados das famílias beneficiadoras do arroz, classe média que rivalizou, em certa altura, com os senhores de engenhos da zona do Cotinguiba e dos vales do Sergipe e do Japaratuba. Mais do que o casario residencial, o Floreliza, hotel de luxo, o 12 Tênis Clube, com seu requinte em dias de festa, e a feira, espraiada com sua cerâmica, mostruário do artesanato e da arte popular de toda a região.
Luiz Gonzaga, com seu reinado popular, cantou Propriá e a amizade que fez com Pedro Chaves, da Fazenda Cabo Verde. E em vários textos demonstrou seu afeto:
“Tudo o que eu tinha/ deixei lá, não trouxe não/......Por isto eu vou voltar pra lá/ não posso mais ficar/ Rosinha ficou lá em Propriá. Ai ai, ui ui,/ eu tenho que voltar/ ai ai, ui ui/ a minha vida tá todinha em Propriá”
“Quando há festa na casa do Pedro/ o comércio fecha em Propriá... Pedro Chaves carrega a ronqueira/destamboca no oco do mundo... Coroné Pedro do Norte/ era homem forte/ coroné do bigodão/ amigo do amigo/inimigo era inimigo/ dizendo sim é sim/ dizendo não é não”
Clemilda, outra artista banhada pelas águas do São Francisco, também cantou Propriá:
“Eu tô aqui Propriá/ você tá lá, Propriá/ peça ao seu Pedro Chaves/ para mandar me buscar”
J. Soares, nascido em Propriá no fim do século XIX, foi, em Pernambuco, ator, produtor e diretor de cinema, no pioneiro Ciclo do Recife, com filmes como Aitaré da Praia, A Filha do Advogado, exibidos para grande público no Cinema Rio Branco, na década de 1920. Na capital pernambucana J. Soares foi, também, grande cronista desportivo, tornando ainda mais famosos os microfones que falavam para o mundo. De Propriá saíram os irmãos Rodrigues Dória, um deles médico pela Faculdade da Bahia, escritor, político, que governou Sergipe e foi seu representante no Congresso Nacional.
Propriá manteve, por muitos anos, a Gráfica e Editora Guarany, que imprimia jornais e livros, especialmente os folhetos de cordel do Trovador Cotinguiba, nome artístico de Augusto Laurindo, criador do célebre Tubiba, personagem que ganhou fama como João Grilo, José de Souza Leão, Pedro Malazartes e outros heróis sagazes da literatura popular do Brasil. Augusto Laurindo foi além do folheto de cordel e publicou alguns livros, como Átomos de Minha Vida (1956) e Ímpetos do Realismo (1962).
Manoel Rodrigues Mariú embora sem ter nascido em Propriá, lá viveu e morreu, é considerado da terra e seu curioso e estranho livro Emblema do Mar Luminoso e Dnoksuá, publicado em 1914, é um repto lançado a “protestar contra as crenças de todos, relativamente ao movimento da terra e a existência dos planetas, como julgam os astrônomos”, como disse, no Prólogo, o seu autor, oferecendo-se aos “ilustres homens de ciência queiram me ver e ouvir, para também afirmarem aos povos que este meu livro é uma verdade”.
Em 2002, quando Propriá completou dois séculos como Vila (7 de fevereiro), Carlos Roberto Brito Aragão e Washington Luiz Prata, lançaram um pequeno álbum, Propriá 200 anos, notas e fotos do bicentenário, recuperando imagens e consolidando informações sobre Propriá, a terra e a gente, a história e a cultura.
Depois disso, Marcos Melo, natural do lugar, também entregou aos leitores Propriá mente Falando (Aracaju: Editora do Conde, 2003), delicioso livro que funde evocações, personagens e fatos, em crônicas e memórias que recompõem, no tempo, as relações das pessoas com o passado. Marcos Melo cumpre, de forma correta, esse papel reservado aos homens de letras, de ordenar o caos, recriando a realidade, servindo ao deleite e à reflexão. Há, embora sem sempre declarada, uma interlocução entre quem escreve e quem lê, na empatia que as narrativas ensejam, despertando ânimos, na medida em que os lugares são revisitados, com seus encantos visíveis e sensíveis.
Propriá mente Falando é uma declaração de amor a Propriá, no sentido de que a cidade, a terra berço do autor é o centro, é o foco do livro, mas também é uma obra aberta às boas lembranças de Marcos Melo, memorialista das aventuras da vida, experiências básicas da sua formação cultura, valorada pelas circunstâncias. Perto dos 60 anos, com uma biografia de homem público e uma carreira profissional vitoriosa, Marcos Melo tem o que dizer, começando por tratar da sua aldeia, onde aprendeu sobre o mundo e de onde saiu para conviver com os cenários e os quadros que, muitas vezes, foram fóruns de decisões.
O livro de Marcos Melo tem todas as virtudes de ser um olhar sincero, ainda que haja uma combinação de ironias, como se o texto fosse uma pauta musical, com notas e acordes, produzidos pela vivacidade do dizer, adornando as frases e dando ao testemunho um sentido lúdico, que enriquece os textos. Chama a atenção as evocações de quadras que fazem de Propriá um cenário especial, onde tanto a educação, quanto o futebol, a religião ou as festas, fluem impulsionados por figuras singulares. Fiel ao tempo, o autor desdobra os fatos qualificando-os, para que fique o registro, intencional, do reconhecimento e da admiração distribuídos entre figuras caras às lembranças de Marcos Melo.
As comunidades deveriam ter seus escritores, como as cidades os seus livros de tombo, para que o presente pudesse represar o passado sem temores do futuro, que tem sido a utopia dos periféricos e subdesenvolvidos. Propriá tem Marcos Melo como seu novo cronista e Propriá mente Falando como um repositório de emoções, enriquecido com o traço de Eliane Carvalho, para tornar-se referência bibliográfica, na literatura e na historiografia sergipana, tal qual tem sido o sentimento de outro propiaense ilustre, ministro e acadêmico Carlos Brito: “Propriá sou eu, confesso/ Porque do rio às canoas/ do arroz ao surubim/ De Enário a Pedro Chaves/ Toda ela mora em mim”.
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