1. Discutir a cultura brasileira nos seus múltiplos aspectos, valorizando a diversidade das expressões e o pluralismo das opiniões;
2. Propor estratégias para: fortalecer a cultura como centro dinâmico do desenvolvimento sustentável; universalizar o acesso dos brasileiros à produção e fruição da cultura; consolidar a participação e o controle social na gestão das políticas públicas de cultura; implantar e acompanhar os Sistemas Nacional, Estaduais e Municipais de Cultura e o Plano Nacional de Cultura; e
3. Avaliar os resultados obtidos a partir da 1ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em 2005.
A 2ª Conferência Nacional de Cultura, além da Plenária Nacional, terá as seguintes instâncias de discussão:
1. Conferências municipais e intermunicipais;
2. Conferências estaduais e do distrito federal;
3. Pré-conferências setoriais;
4. Conferência virtual e
5. Conferências livres.
Além de deliberar, esses encontros visam estimular a criação e o fortalecimento de redes de agentes e instituições culturais do país, para dar prosseguimento, em caráter permanente, às discussões e articulações.
Conferência Municipal – Dentro destes propósitos e cronograma, Pirambu realiza nesta sexta-feira, 30/10, a sua 3ª Conferência Municipal de Cultura, que terá como tema central “Cultura, Diversidade, Cidadania e Desenvolvimento”. Além do tema central, a Conferência Municipal terá cinco Eixos Temáticos, a saber:
1. Produção Simbólica e Diversidade Cultural;
2. Cultura, Cidade e Cidadania;
3. Cultura e Desenvolvimento Sustentável;
4. Cultura e Economia Criativa e
5. Gestão e Institucionalidade da Cultura.
Programação – A 3ª Conferência Municipal de Cultura será realizada nesta sexta-feira, 30/10, com abertura prevista para às 08 horas (credenciamento), na Câmara Municipal. Após o Credenciamento teremos a Abertura Solene, com as presenças do prefeito municipal, economista José Nilton de Souza, do secretário municipal de Cultura, músico Luiz Teles da silva, demais autoridades convidadas. Logo em seguida teremos uma Palestra Inicial sobre o Tema Central: “Cultura, Diversidade, Cidadania e Desenvolvimento”, a ser ministrado pelo professor Claudomir Tavares da Silva, seguido de debate. O último ponto da manhã será a leitura e aprovação do Regimento Interno da Conferência. Após o almoço, os delegados participam a tarde das discussões em Grupos de Eixos Temáticos, que terão local as instalações da Câmara Municipal e da Secretaria Municipal de Cultura.
:: Tema Central: “Cultura, Diversidade, Cidadania e Desenvolvimento”
No início de sua gestão à frente do Ministério da Cultura (MinC), quando perguntado sobre as diretrizes que iriam pautar a política cultural do governo, o ex-ministro Gilberto Gil respondeu: “A abrangência”. Esse critério fundamentou a concepção que hoje compreende a cultura em três dimensões: simbólica, cidadã e econômica.
A dimensão simbólica fundamenta-se na ideia de que é inerente aos seres humanos a capacidade de simbolizar, que se expressa por meio das diversas línguas, valores, crenças e práticas. Toda ação humana é socialmente construída por meio de símbolos que, entrelaçados, formam redes de significados que variam conforme os diferentes contextos sociais e históricos. Nessa perspectiva, também chamada antropológica, a cultura humana é o conjunto de modos de viver, que variam de tal forma que só é possível falar em culturas, no plural.
Adotar essa dimensão possibilita instituir uma política cultural que enfatiza, além das artes consagradas, toda a gama de expressões que caracterizam a diversidade cultural brasileira. Mesmo no âmbito exclusivo das artes, a concepção simbólica permite ampliar a ação pública para abranger todos os campos da cultura. Artes populares, eruditas e de massas são colocadas num mesmo patamar político, merecendo igual atenção do Estado, embora com programas, ações e projetos específicos e respeito ao comando constitucional que protege, de forma especial, as culturas populares, indígenas e afro-brasileiras (art. 215). Também é superada a tradicional separação entre políticas de fomento à cultura (geralmente destinadas às artes) e de proteção ao patrimônio cultural, pois ambas se referem ao conjunto da produção simbólica da sociedade.
A dimensão cidadã fundamenta-se no princípio de que os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos e devem constituir-se como plataforma de sustentação das políticas culturais. A esse respeito a CF/88 é explícita: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais” (art. 215). Contudo, esses direitos são ainda pouco conhecidos e frequentemente desrespeitados e subestimados, quando comparados aos direitos civis, políticos, econômicos e sociais, que gozam de maior reconhecimento. Por outro lado, o mundo contemporâneo, pós-Guerra Fria, está vendo emergir fatores de ordem política, social e econômica que estão conduzindo as questões culturais ao centro das atenções. Nessa conjuntura, definir e colocar em prática os direitos culturais é vital para o desenvolvimento humano e para a promoção da paz (ver pontos 2.3 e 3.1).
A dimensão econômica compreende que a cultura, progressivamente, vem se transformando num dos segmentos mais dinâmicos das economias de todos os países, gerando trabalho e riqueza. Mais do que isso, a cultura é hoje considerada elemento estratégico da chamada nova economia, que se baseia na informação, na criatividade e no conhecimento. A economia da cultura não pode mais ser desconsiderada pelas políticas governamentais, não só pelo que representa no fomento ao próprio setor, mas também por sua inserção como elemento basilar do desenvolvimento econômico geral.
Eixo I – “Produção Simbólica e Diversidade Cultural
Foco: produção de arte e de bens simbólicos, promoção de diálogos interculturais, formação no campo da cultura e democratização da informação.
1.1. Produção de Arte e Bens Simbólicos
A arte pode ser compreendida como um dos subsistemas simbólicos da cultura - o sistema estético - onde estão refletidos os significados subjacentes à vida social, presentes também em outros campos: na religião, no trabalho, nas relações de parentesco e poder. Assim entendida, a arte é uma das formas de conhecer e interpretar o mundo. A ampla gama de expressões artísticas existentes no planeta resulta da diversidade de concepções que os seres humanos têm sobre como são e funcionam as coisas.
As instituições culturais, reconhecendo essa diversidade, lançam um novo olhar sobre o debate referente à valoração simbólica da produção artística. Tanto as instituições responsáveis pelo patrimônio cultural, como as que cuidam das artes contemporâneas, começam a construir um modelo menos rígido para classificar e tratar essa produção. As fronteiras que pareciam separar o tradicional do contemporâneo se desfazem. O próprio conceito de contemporaneidade passa a levar em consideração as manifestações populares. Mesmo porque essas manifestações nunca foram estáticas, ao contrário, as tradições sempre evoluem e se modificam, acompanhando o movimento da história. Os bens simbólicos, tomados em conjunto, agora fazem parte de um projeto de política cultural que considera a multiplicidade de expressões como a referência institucional.
A pintura corporal dos índios brasileiros exemplifica essa fusão de arte e patrimônio cultural. Ela é, ao mesmo tempo, expressão estética, sinalização ritualística, identificação de grupo étnico, diferenciação sexual, representação de poder, proteção corporal e mimetismo. É uma manifestação cultural de entendimento simples para os que dela compartilham, integrada harmoniosamente à comunidade e ao meio-ambiente. No entanto, é complexa para os estudiosos, pois abrange um universo fabuloso de variações, conforme a origem do grupo, refletindo um sistema de códigos que remontam a tempos imemoriais.
Na história do mundo ocidental, contudo, o campo das artes adquire autonomia e se fragmenta. Na atualidade, a cada dia que passa as fronteiras que separam as artes se tornam mais flexíveis, mas ainda cabe às instituições culturais compreender as especificidades de cada uma e identificar suas carências e potencialidades. E instituir políticas de fomento, investimento e financiamento que garantam, em parceria com a iniciativa privada e não-governamental, a sustentação dos processos de criação, produção, distribuição, difusão, consumo e preservação dos bens simbólicos (ver 4.1.).
1.2. Convenção da Diversidade e Diálogos Interculturais
No mundo contemporâneo - onde a cultura e as identidades culturais estão na base de inúmeros conflitos -, respeitar a diversidade cultural significa, antes de tudo, garantir a paz e a segurança internacionais. Para tanto, a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada pela Unesco em 2005 e já ratificada pelo Brasil, convoca os povos e nações ao diálogo e à cooperação. O diálogo intercultural será eficaz se tiver como ponto de partida o respeito mútuo e o reconhecimento da dignidade inerente a todas as culturas. O Brasil, por sua diversidade e tradição diplomática em defesa da paz, agora elevada a princípio constitucional (art. 4º, VI e VII), pode e deve tornar-se um ator relevante na promoção desse diálogo, contribuindo para a solução de conflitos que eclodem a toda hora no cenário internacional.
A diversidade cultural é um dos maiores patrimônios do Brasil, fruto de nossa formação histórica. Por isso o diálogo intercultural deve estabelecer-se também no âmbito interno, entre os diversos grupos de identidade existentes no território nacional. Para tanto, a Convenção reafirma o direito soberano dos Estados de implantar as políticas e medidas que eles julgarem apropriadas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais existentes em seus territórios, tendo presente que cabe proteção especial aos grupos mais vulneráveis às dinâmicas excludentes da globalização.
1.3. Cultura, Educação e Criatividade
A capacidade de criar é inerente a todos os seres humanos e se manifesta desde a tenra infância. No entanto, para que seja desenvolvida e potencializada, a criatividade depende, além do esforço individual, de um contínuo processo de formação, informação e aperfeiçoamento.
O desenvolvimento econômico e social do mundo contemporâneo está associado, cada vez mais, à capacidade humana de simbolizar, ou seja, ancora-se na criatividade de indivíduos e grupos. Nesse contexto, investir conjuntamente em cultura e educação é estratégico, e para isso é necessário criar instâncias de coordenação entre as políticas culturais e educacionais e estimular a interação entre as expressões da cultura e o sistema educativo.
Em 1985 ocorre a separação entre os ministérios da Educação e da Cultura, que até então era tratada como apêndice da política educacional. Criar um ministério exclusivo, no momento da transição para a democracia, significou reconhecer a importância da cultura para a construção da cidadania e para a proteção, promoção e valorização da diversidade cultural e da criatividade brasileiras. No entanto, esse ganho também trouxe perdas. Educação e Cultura praticamente deram-se as costas e a separação administrativa acabou gerando uma separação conceitual. Perdeu a Educação, com políticas dissociadas da dimensão da arte, da criatividade e da diversidade cultural; perdeu a Cultura, com políticas baseadas numa visão exclusivamente comercial, voltadas para o entretenimento e esquecidas de seu papel na promoção da cidadania.
Cabe, agora, buscar o reencontro da Educação e da Cultura, sem que para isso seja necessário retornar à situação administrativa anterior. As políticas culturais e educacionais podem construir uma agenda comum e colaborativa que qualifique a educação artística, implante a educação patrimonial e contribua para o incentivo ao livro e à leitura. Espera-se que essa agenda recoloque a cultura na vida cotidiana de professores e estudantes e abra espaço para que os mestres da cultura popular possam transmitir a riqueza dos seus saberes. Para tanto, é fundamental impulsionar a implantação da lei n º 11.465, que inclui no currículo oficial a obrigatoriedade das temáticas da história e da cultura afro-brasileira e indígena. Cabe aos afrodescendentes e indígenas serem os protagonistas desse processo, já que são eles os legítimos detentores da memória e da história desses povos.
1.4. Cultura, Comunicação e Democracia
As atividades relacionadas à informação estão adquirindo importância crescente no mundo atual. A produção, difusão e acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais. O monopólio dos meios de comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural.
As políticas culturais só recentemente começam a dar importância aos meios de comunicação de massas e ao seu papel de produtor e difusor da cultura. Tão necessário quanto reatar o vínculo entre cultura e educação é integrar as políticas culturais e de comunicação. Nesse sentido, os fóruns de cultura e de comunicação devem unir-se na luta pela regulamentação dos artigos da CF/88 relativos ao tema. Entre eles o que obriga as emissoras de rádio e televisão a adaptar sua programação ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, bem como o que estabelece a preferência que deve ser dada às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, à promoção da cultura nacional e regional e à produção independente (art. 221). Da mesma forma, cabe regulamentar o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de rádio e TV (art. 223).
As emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que são legítimas. Contudo, essas demandas não podem ser as únicas a dar o tom da comunicação social no país. Aqui entra o papel das emissoras públicas, que devem dar visibilidade às idéias e expressões culturais minoritárias, que não têm aptidão para tornarem-se “campeãs de audiência” e nem encontram lugar nas emissoras comerciais. Exercendo funções complementares – não opostas – as emissoras públicas e comerciais, cada uma no seu campo, fortalecem a saúde da democracia.
As TVs e rádios comerciais vendem sua audiência (o público) para os anunciantes. Sua estratégia dirige-se à captação de público e à manutenção da atenção desse público. Elas vivem disso, que é o que tem valor em seu modelo de negócio. Para tanto, sua programação visa, basicamente, o entretenimento. As TVs e rádios públicas devem caminhar em outra direção. Não podem ser caixas de ressonância das demandas do mercado e tampouco sujeitar-se a promover os governantes. Precisam ser independentes dos governos e do mercado. Sua programação deve basear-se na experimentação de linguagens, na discussão de ideias e na busca da autonomia e da emancipação de ouvintes e telespectadores. Em suma, o negócio da televisão e das rádios públicas não é o entretenimento, é cultura, educação, informação e liberdade.
Para avançar nessa direção é necessária uma maior articulação interna do setor. Hoje, no país, há inúmeros canais públicos, mas eles não dialogam nem cooperam entre si e por vezes se consideram concorrentes. Conjugadas, essas emissoras podem estabelecer redes capazes de produzir e transmitir conteúdos ricos e diversos, funcionando em bases articuladas democraticamente, que respeitem suas especificidades, mas cuja resultante seja a constituição de malhas de troca e conexão de programações.
As TVs e rádios públicas são estratégicas para que a população tenha acesso aos bens culturais e ao patrimônio simbólico do país em toda sua diversidade. Para tanto elas precisam aprofundar a relação com a comunidade, que se traduz no maior controle social sobre sua gestão, no estabelecimento de canais permanentes dedicados à expressão das demandas dos diversos grupos sociais, na adoção de um modelo aberto à participação de produtores independentes e na criação de um sistema de financiamento que articule o compromisso de Municípios, Estados e União. Organicamente ligadas à sociedade, podem ampliar seu leque de prestação de serviços, conjugando programações para diferentes meios (como a telefonia celular e a internet) e espaços educativo-culturais, como escolas, universidades, centros culturais, sindicatos e associações comunitárias.
:: Eixo II – “Cultura, Cidade e Cidadania”
Foco: cidade como espaço de produção, intervenção e trocas culturais, garantia de direitos e acesso a bens culturais.
2.1. Cidade como Fenômeno Cultural
Em 2004, cidades e governos locais de todo o mundo, comprometidos com os direitos humanos, a diversidade cultural, a democracia participativa e a criação de condições para a paz, aprovaram a Agenda 21 da Cultura, documento orientador das políticas culturais locais. Entre os princípios desse documento destacam-se: (i) a diversidade cultural é o principal patrimônio da humanidade; não obstante, ninguém pode invocá-la para atentar contra os direitos humanos; (ii) há uma profunda relação entre patrimônio cultural e patrimônio ambiental, que constituem bens comuns da humanidade; (iii) a liberdade cultural dos indivíduos e das comunidades é uma condição essencial da democracia; (iv) as cidades e espaços locais são ambientes privilegiados de realização da cultura, onde o encontro de tudo o que é diferente e distinto torna possível o desenvolvimento humano integral; (v) o patrimônio cultural, tangível e intangível, é testemunho da criatividade humana e substrato da identidade dos povos; (vi) a afirmação das culturas e o conjunto de políticas postas em prática para seu reconhecimento e viabilidade, constituem fator essencial ao desenvolvimento das cidades e territórios em todos os planos: econômico, político, social e humano; (vii) as políticas culturais devem encontrar um ponto de equilíbrio entre interesses públicos e privados; uma excessiva institucionalização ou a excessiva prevalência do mercado comportam riscos e levantam obstáculos ao desenvolvimento dos sistemas culturais; (viii) o acesso sem distinções aos meios de expressão, tecnológicos e de comunicação e a constituição de redes horizontais fortalece e alimenta a dinâmica das culturas locais e enriquece o acervo coletivo; (ix) os espaços públicos são bens coletivos e nenhum indivíduo ou grupo pode ver-se privado de sua livre utilização, dentro do respeito às normas adotadas em cada cidade.
Sabe-se que a população brasileira, entre 1940 e 1980, passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana, sob o impulso da migração de um vasto contingente de pobres. Nessas cidades, por muito tempo a população pobre permaneceu excluída das condições básicas de vida, sem acesso à infra-estrutura urbana e às oportunidades de trabalho, cultura e lazer. Em geral, os equipamentos culturais ficavam situados no centro urbano ou nas regiões mais ricas da cidade.
Com a redemocratização do país, muitas administrações municipais implantaram o Orçamento Participativo e essa população passou a ser consultada e a reivindicar a instalação de Centros Culturais. As expectativas em torno desses espaços são de três tipos: (i) ser um lugar de lazer, recreação e cultura localizado próximo ao local de residência; (ii) servir como antídoto à sedução que o crime organizado exerce sobre crianças e jovens, por meio da ocupação do tempo livre (extra-escolar); (iii) abrir oportunidades de inclusão social (emprego e renda) via atividades artesanais e artísticas. Constata-se, assim, que a cultura está sendo chamada a cumprir papel complementar às políticas educacionais, de segurança e trabalho, o que impõe grandes responsabilidades. Os equipamentos culturais também são utilizados para reabilitar áreas urbanas atingidas pela degradação e pelo esvaziamento. Nesse ponto, o desafio é revitalizar sem discriminar, já que muitos projetos desse tipo implicam na expulsão da população pobre para áreas distantes e mais desvalorizadas.
A instalação de espaços culturais constitui o ponto culminante dos programas de descentralização da cultura, que têm um caráter, ao mesmo tempo, geopolítico e socioeconômico, porque resultam na implantação de equipamentos em regiões da cidade ainda marcadas pela exclusão. Ao avaliar os resultados dos programas de descentralização cultural, é possível constatar que a perspectiva dicotômica – centro/periferia – deve ser substituída por uma nova visão das cidades, que identifica no território urbano uma variedade de regiões, com seus próprios centros e periferias.
2.2. Memória e Transformação Cultural
Há uma dialética da tradição, isto é, uma tradição só se firma e se mantém como tal na medida em que é capaz de renovar-se, quando ocorrem mudanças históricas que ameaçam sua sobrevivência ou exigem sua transformação. Se não se transforma, a “tradição” está fadada ao desaparecimento. Há uma relação dialética também entre identidade e criatividade. Se a identidade é um sistema de significados que se fundamenta na memória, a criatividade é o processo de produção de novos significados, que sinalizam para o futuro.
O poder público enfrenta um dilema quando é chamado a proteger a diversidade cultural. Historicamente, as políticas de patrimônio cultural vinculam-se às estratégias de legitimação do poder, ou seja, à necessidade que tem o Estado de se apresentar como o representante do interesse geral da sociedade, de todos os seus membros, independentemente de classe social, gênero, etnia, etc. As políticas educacionais e culturais muitas vezes são instrumentalizadas com esse objetivo. Para cumprir a função legitimadora, as políticas de patrimônio costumam construir uma identidade coletiva dos habitantes de determinado território (nacional, subnacional, local), a fim de unir os indivíduos em torno de valores que, supostamente, são comuns a todos. Para que essa identidade exerça eficazmente o papel legitimador ela deve ser singular (referir-se somente a um território), imutável (ou seja, anti-histórica) e unívoca (portadora de um mesmo significado para todos os membros da sociedade).
A pergunta que se coloca é a seguinte: como pode o poder público proteger e promover a diversidade cultural existente no território sob sua jurisdição, se ele necessita, para legitimar-se, de construir uma identidade única e comum no âmbito desse mesmo território? Uma alternativa que se apresenta é considerar como coletiva a soma das diversas identidades grupais, mas, para isso, é preciso abandonar o objetivo de construir uma identidade oficial e ser capaz de operar em um campo no qual podem ocorrer tensões e conflitos entre os diversos movimentos de identidade. Além disso, o poder público tem de estar aparelhado para processar as múltiplas demandas dos atores sociais que lutam pelo reconhecimento de suas identidades. Enfim, trata-se de reconhecer que existe unidade na diversidade, e diversidade na unidade.
Uma outra questão, também complexa, refere-se à possibilidade de haver distintas interpretações sobre os significados do patrimônio cultural. A distinção entre patrimônio material e imaterial ajuda a compreender esse fenômeno. É fato que o patrimônio material - particularmente o constituído de “cal e pedra” - tende a ser duradouro, variando pouco através do tempo. O patrimônio imaterial, por sua vez, constituído pelos saberes, celebrações e formas de expressão, tende a modificar-se mais rapidamente e a adquirir novos formatos. Contudo, o que importa mesmo são os valores e significados atribuídos pelas coletividades a esse patrimônio, seja ele material ou imaterial. Desse ponto de vista é possível dizer que todo patrimônio cultural é, em última instância, imaterial, porque afinal significados e valores são coisas imateriais. No entanto, os significados podem variar quando interpretados por um ou outro grupo humano. Todos concordam que Jerusalém tem uma grande significação para a história da humanidade. Mas os valores ali contidos variam conforme o olhar das diferentes religiões, podendo ser até mesmo antagônicos se interpretados por católicos, muçulmanos ou judeus.
Todas essas complexas questões levam a concluir que os espaços de memória, como os museus, arquivos e bibliotecas, têm uma grande importância social e política. A memória coletiva necessita de suportes para manter-se disponível e em permanente ressignificação. Cumprindo a função de guardar, conservar e disponibilizar acervos, essas instituições contribuem enormemente para a extensão dos direitos culturais.
2.3. Acesso, Acessibilidade e Direitos Culturais
A Constituição brasileira, embora cite explicitamente os direitos culturais, não chega a detalhá-los. Contudo, analisando os vários documentos internacionais da ONU e da Unesco já reconhecidos pelo Brasil, e a própria CF/88, pode-se concluir que os direitos culturais são os seguintes: direito à identidade e à diversidade cultural; direito à participação na vida cultural (que inclui os direitos à livre criação, livre acesso, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural); direito autoral e direito/dever de cooperação cultural internacional.
O direito à identidade e à diversidade cultural, que nasce durante o século XVIII no âmbito dos Estados nacionais, é elevado ao plano internacional após a Segunda Guerra Mundial, quando ocorrem verdadeiros saques ao patrimônio cultural dos países ocupados. Em 1954 a Unesco proclama a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, documento em que os Estados se comprometem a respeitar os bens culturais situados nos territórios dos países adversários, assim como a proteger seu próprio patrimônio em caso de guerra. O movimento ecológico, que ganhou ímpeto a partir da década de 1970, também contribui para a elevação desse direito ao plano mundial. Em 1972 a Unesco aprova a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, onde se considera que a deterioração e o desaparecimento de um bem natural, ou cultural, constituem um empobrecimento do patrimônio de todos os povos do mundo. O vínculo entre patrimônio cultural e ambiental é reforçado na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001), que diz ser a diversidade cultural, para o gênero humano, tão necessária quanto a diversidade biológica para a natureza. Por isso deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Situação específica é a dos países onde existem minorias étnicas, religiosas e lingüísticas. Nesse caso, o artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos (1966) garante aos membros desses grupos o direito de ter sua própria vida cultural, professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. Em 1992 a ONU aprofunda esses princípios na Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Lingüísticas, na qual se formula a obrigação dos Estados de proteger a identidade cultural das minorias existentes em seus territórios. Também cabe destacar a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989). Considerando que a cultura popular deve ser protegida por e para o grupo cuja identidade expressa, e reconhecendo que as tradições evoluem e se transformam, essa Recomendação insiste, basicamente, na necessidade dos Estados apoiarem a investigação e o registro dessas manifestações. Não obstante, temendo que a cultura popular venha a perder seu vigor sob a influência da indústria cultural, recomenda-se aos Estados que incentivem a salvaguarda dessas tradições não só dentro das coletividades das quais procedem, mas também fora delas. Finalmente, cabe citar a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Esse documento chama a atenção para a necessária integração da cultura nos planos e políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento e reafirma o direito soberano dos Estados de implantar políticas de proteção e promoção da diversidade cultural em seus respectivos territórios.
O direito à livre participação na vida cultural foi proclamado no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam. Analisando documentos posteriores, pode-se subdividir o direito à participação na vida cultural em quatro categorias: direito à livre criação, livre fruição, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural. A Recomendação sobre o Status do Artista (1980), que trata da liberdade de criação, convoca expressamente os Estados a ajudar a criar e sustentar não apenas um clima de encorajamento à liberdade de expressão artística, mas também as condições materiais que facilitem o aparecimento de talentos criativos. No que diz respeito à difusão, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) assegura a todas as pessoas a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha. Excetuam-se os casos que envolvem a reputação das demais pessoas e as manifestações contrárias aos princípios fundamentais dos direitos humanos, tais como a propaganda a favor da guerra e a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso. Por fim, a Declaração do México sobre as Políticas Culturais (1982) postula a ampla participação dos indivíduos e da sociedade no processo de tomada de decisões que concernem à vida cultural. Para tanto, recomenda-se multiplicar as ocasiões de diálogo entre a população e os organismos culturais, por meio da descentralização das políticas de cultura.
O direito autoral foi internacionalmente reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 27) e, mais tarde, na Convenção Universal sobre Direito de Autor (1952). Esse direito permeia a criação, a produção, a distribuição, o consumo e a fruição dos bens culturais, e está na base de todas as cadeias econômicas da cultura. Fundamenta-se na ideia de que a propriedade sobre a criação intelectual e artística é a mais legítima e a mais pessoal das propriedades, porque as obras, além da dimensão material, têm uma dimensão moral, são como emanações da personalidade dos autores. Entretanto, o direito autoral não é puramente individual, porque depois de certo tempo as obras caem em domínio público, ou seja, passam a pertencer a toda a sociedade. O interesse social termina por prevalecer sobre o individual. Hoje, na sociedade da informação e do conhecimento, o direito autoral vem sendo bastante questionado. Pergunta-se se é possível coexistirem o direito autoral e a rede mundial de computadores (Internet), que permite uma inédita reprodução de textos, sons e imagens. Os especialistas respondem que sim, é possível, mas que para isso o direito autoral terá de renovar-se e até mesmo utilizar-se das novas tecnologias para proteger os autores e suas obras. Nessa renovação o direito autoral terá de harmonizar-se com o direito à participação na vida cultural, para que a liberdade de acesso e a exclusividade de utilização das obras – princípios, respectivamente, da sociedade da informação e do direito autoral – possam coexistir e equilibrar os interesses públicos e particulares envolvidos.
O direito/dever de cooperação cultural internacional foi proclamado na Declaração de Princípios da Cooperação Cultural Internacional (1966): a cooperação cultural é um direito e um dever de todos os povos e de todas as nações, que devem compartilhar o seu saber e os seus conhecimentos, diz seu artigo quinto. Essa Declaração considera o intercâmbio cultural essencial à atividade criadora, à busca da verdade e ao cabal desenvolvimento da pessoa humana. Afirma que todas as culturas têm uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e que é através da influência que exercem umas sobre as outras que se constitui o patrimônio comum da humanidade.
O vínculo entre os direitos à identidade e à cooperação é profundo. Se, por um lado, é reconhecido o direito de cada povo defender seu próprio patrimônio, de outro, esses mesmos povos têm o dever de promover o intercâmbio entre si. Em suma, nenhum país, região, grupo étnico, religioso ou lingüístico poderá invocar suas tradições para justificar qualquer tipo de agressão, pois acima dos valores de cada um está o patrimônio comum da humanidade, cujo enriquecimento se dá na mesma proporção em que o intercâmbio cultural é incrementado.
:: Eixo III – “Cultura e Desenvolvimento Sustentável
Foco: a importância estratégica da cultura no processo de desenvolvimento
3.1. Centralidade e Transversalidade da Cultura
Para concretizar o conceito antropológico de cultura, que se expressa na CF/88 como “todos os modos de viver, fazer e criar” (art. 216), as políticas culturais têm de se articular com todas as outras políticas públicas. Além de necessário, isso hoje é urgente, porque as questões culturais vêm ocupando, de forma gradativa, lugar destacado nos conflitos mundiais.
No mundo atual, pós-Guerra Fria (particularmente pós-11 de setembro), são as culturas e as identidades culturais que estão moldando os padrões de coesão, desintegração e conflito entre pessoas, povos e nações. As diferenças agora não se definem apenas pelas ideologias, mas principalmente pela religião, idioma, história, valores, costumes, instituições e até mesmo pela auto-identificação subjetiva das pessoas. Além disso, os conflitos políticos (internos e entre as nações) cada vez mais são justificados por argumentos de natureza cultural.
Paralelamente, ocorre uma incessante fragmentação das identidades coletivas, impulsionada pela chamada globalização, na qual o livre fluxo de capitais, mensagens e mercadorias (incluindo as ilegais) ultrapassa as fronteiras e regulamentações dos Estados nacionais que assim se vêem limitados em sua influência. Entre as consequências dessa situação situa-se o enfraquecimento do poder mobilizador das identidades nacionais, sustentadas pelos Estados, e a retomada, por diferentes grupos e comunidades humanas, de identidades pretéritas, fundadas em antigas tradições.
A proliferação de identidades coletivas está relacionada também às transformações da economia capitalista, antes focada na produção e recentemente no consumo. Atributos considerados como trunfos dos produtores – lealdade aos costumes, tolerância à rotina e predisposição para adiar desejos –, são abominados pelos consumidores, que vivem ansiosos por adquirir a última novidade e descartar a penúltima. Nesse ambiente, novas identidades são constituídas e dissolvidas, impulsionadas por eventos ou motivos às vezes fúteis, como uma partida de futebol, um crime cruel ou a morte de uma celebridade em evidência.
O acesso às identidades é, contudo, um campo de luta e exclusão social. No topo da pirâmide global estão os que constituem e desarticulam suas identidades mais ou menos à vontade. Na base, abarrotam-se os que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar suas preferências e que no final se veem oprimidos por identidades impostas por outros, que humilham, desumanizam, estigmatizam: “sem teto”, “favelado”, “jeca”, “sem pátria”.
Para enfrentar esses novos desafios as políticas culturais precisam sair da posição periférica em que se encontram para colocar-se no cerne das políticas governamentais. Além de uma base conceitual e institucional mais sólida, têm de relacionar-se estrategicamente com outras políticas.
As interfaces com a Educação e a Comunicação são hoje prioritárias (ver 1.3. e 1.4.), mas outras conexões também são necessárias. A Cultura deve relacionar-se com as políticas de Ciência e Tecnologia e reforçar a premissa de que o desenvolvimento científico tem de incorporar a diversidade cultural do país, com seus múltiplos conhecimentos e técnicas. Também é vital articular-se com os programas de inclusão digital, pois os novos aparatos tecnológicos de transferência e armazenamento de informações influenciam as dinâmicas de expressão, fruição e consumo cultural. A convergência digital pode ser o ambiente futuro de circulação da cultura, mas para isso é necessário que as tecnologias de informação e comunicação sejam descentralizadas e democratizadas.
A Cultura pode contribuir também com as políticas de Saúde, seja na criação de ambientes lúdicos para o tratamento e socialização de doentes, seja no desenvolvimento de terapias baseadas nas artes (música, dança, artes visuais e outras), adequadas à cura de sofrimentos mentais.
Da mesma forma, a Cultura pode integrar-se com a Segurança Pública e contribuir para a redução da violência, pois maneja símbolos capazes de encantar, humanizar e reconstituir possibilidades de vida.
3.2. Patrimônio Cultural, Meio Ambiente e Turismo
No Brasil, a proximidade entre patrimônio cultural e natural é anterior à eclosão dos movimentos ambientalistas. O Decreto-lei 25, de 1937, que foi acolhido pela CF/88 e continua em vigor, prevê a proteção não só de bens do patrimônio histórico e artístico, como também de monumentos naturais e sítios de valor paisagístico, arqueológico e etnológico. É verdade que a trajetória da política de patrimônio priorizou os bens do período colonial, mas hoje essa perspectiva foi ampliada. A política cultural não está alheia à crise ambiental, que se torna mais grave a cada dia. Mesmo porque essa crise decorre de um componente cultural: o modo de vida consumista, que explora exaustivamente os recursos naturais.
Para muitos povos o vínculo entre natureza e cultura é indissolúvel, e aqueles que o perderam necessitam reatá-lo, sob pena de comprometer todo o ecossistema do planeta. No Brasil aprendemos pouco com as culturas indígenas; ao contrário, o país ainda está preso ao modelo colonial, extrativista, perdulário e sem compromisso com a preservação dos recursos naturais.
Agir com rigor na proteção do patrimônio natural e cultural pressupõe pensar novos modos de vida. Assim como o movimento ambientalista criou o conceito de desenvolvimento sustentável, para conciliar crescimento econômico e preservação da natureza, pode-se falar em “sustentabilidade cultural”, que significa erradicar a miséria, a pobreza e o analfabetismo, chegar aos níveis superiores de educação e usufruir dos benefícios da ciência e da tecnologia. Pressupõe respeitar e proteger a diversidade cultural, ter acesso às coisas belas e, no limite, conquistar a paz. Paz não como ausência de conflitos, mas como a possibilidade de solucioná-los por meios não-violentos.
Tendo como referência os conceitos de sustentabilidade ambiental e cultural é possível dialogar positivamente com as políticas de turismo. Somente assim podem ser suprimidas desconfianças mútuas, que resultam de ações equivocadas, como a remoção de moradores pobres de centros históricos reformados e a espetacularização de tradições populares, com objetivos exclusivamente comerciais. É sabido que os turistas têm predileção pelo que é original e singular, e que por isso os bens culturais e naturais exercem sobre eles forte atração. Essa circunstância pode ser aproveitada para potencializar as expressões culturais locais e conservar as belezas naturais, desde que o turismo seja também ele sustentável.
3.3. Cultura, Território e Desenvolvimento Local
Os territórios da cultura são múltiplos e suas fronteiras flexíveis e superpostas: cidade, campo e floresta; capital e interior; centro e periferia; litoral e sertão; União, Estados e Municípios; Grandes Regiões (norte/nordeste/sudeste/sul/centro oeste), regiões metropolitanas e outras no âmbito dos Estados; espaços cibernéticos... Os desafios que se colocam para as políticas culturais são os de estar presentes em todos esses lugares e contribuir para superar os desequilíbrios sócio-econômicos e regionais que ainda marcam a organização territorial do Brasil.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que os 10% mais ricos do Brasil são responsáveis por aproximadamente 40% do consumo cultural. A maioria desse público é constituída por pessoas de alta escolaridade e vive nas regiões metropolitanas, que concentram 41% do consumo cultural. Esse desequilíbrio territorial e social do consumo cultural está relacionado à desigualdade também na distribuição de equipamentos pelo país: 82% dos municípios têm baixo número desses equipamentos (menos de 6 entre 15 considerados), sendo que a região Norte apresenta 85% de municípios nessa categoria. Os empregos culturais formais na área da cultura também estão concentrados nas regiões de maior densidade econômica, particularmente no Sudeste e, nessa região, nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. A grande maioria desses empregos (98%) está localizada na indústria cultural. O percentual de participação de mulheres e negros no mercado de trabalho cultural é menor do que o de homens e brancos, e a desigualdade salarial entre homens e mulheres e entre brancos e negros ainda é uma realidade.
Completando esse quadro, os recursos públicos federais, que já são escassos, chegam a poucos municípios. Em contrapartida, ao comparar os gastos públicos em cultura, nas três esferas de governo, verifica-se que os municípios respondem por 52,6% dos dispêndios, os Estados por 34,6% e o governo federal por 12,8%. Esses dados, de 2003, mostram que os municípios têm papel fundamental na vida cultural do país, embora os de menor porte (até 5.000 habitantes) possuam menos autonomia (porque são dependentes de transferências federais e estaduais) e menor capacidade para alocar recursos.
As desigualdades só podem ser enfrentadas com políticas focadas nas regiões mais carentes. Nesse sentido, o programa Territórios da Cidadania, coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, é inovador. Não só porque articula inúmeras políticas setoriais (incluindo a cultura), mas também porque atinge as regiões mais pobres de todos os Estados brasileiros.
:: Eixo IV – “Cultura e Economia Criativa”
Foco: economia criativa como estratégia de desenvolvimento
4.1. Financiamento da Cultura
O financiamento da cultura tem de ser pensado em função dos objetivos da política cultural. Cada objetivo pode definir uma estratégia diferente para a injeção de recursos, que podem ser provenientes de fontes diversas. O financiamento é determinado pela política e não seu determinante. Esse princípio, que parece óbvio, custou a ser admitido na área da cultura, onde durante muito tempo predominou a ideia de que o Estado nada mais tem a fazer se não fomentar e financiar.
Sob o império dessa concepção é que foram criadas as leis de incentivo com base na renúncia fiscal. Por meio delas o poder público abre mão de arrecadar parte de impostos dos contribuintes que se dispõem a investir nas atividades culturais. Após anos de experiências, nas diversas esferas de governo, ficaram evidentes as distorções desse modelo de financiamento. Como essas leis entregam ao mercado de patrocínio a decisão sobre o que apoiar, elas acabam provocando, como é próprio dos mercados, todo tipo de desigualdade. Desigualdade entre regiões (as que concentram mais empresas atraem o grosso dos patrocínios); desigualdade entre produtores (os que são mais organizados têm maior acesso às empresas e captam mais recursos); entre patrocinadores (os que têm maior faturamento podem apoiar mais projetos); entre tipos de projetos (os que, na visão das empresas, têm maior impacto de marketing obtêm mais patrocinadores); entre os artistas (as empresas preferem associar sua marca a nomes já consagrados). Os números falam por si: nos 18 anos de funcionamento da lei atual, 3% dos proponentes captaram mais de 50% dos recursos; grande parte desses recursos (cerca de 80%) vai para um número restrito de artistas e produtores localizados no eixo Rio-São Paulo. E o montante de recursos movimentado pela lei corresponde a nada menos do que 80% de tudo o que o Ministério da Cultura tem para aplicar em cultura.
Na época em que as leis de incentivo com base na renúncia fiscal foram introduzidas na União e em vários Estados e Municípios, dizia-se que elas teriam um efeito “pedagógico” sobre as empresas. Pensava-se que os patrocinadores, com o tempo, seriam convencidos das vantagens do investimento cultural e dispensariam o incentivo público. Essa expectativa revelou-se ilusória. Quando o governo Collor extinguiu a chamada lei Sarney, as empresas imediatamente se afastaram do patrocínio cultural. Na atual crise financeira o mesmo fenômeno se repetiu, demonstrando que de fato é mínimo o compromisso do mercado com incentivo à cultura. Se o que se deseja é superar as desigualdades sociais, culturais e regionais, não há como abrir mão da presença ativa do Estado.
Uma distorção pouco lembrada das leis de incentivo é que nelas todos os segmentos da arte e da cultura são colocados num mesmo caldeirão. Sabe-se, contudo, que a produção cultural tem características distintas conforme a natureza do produto. O audiovisual difere das artes cênicas, que difere das artes visuais, que difere da literatura, que difere da música, que difere da cultura popular e assim por diante. Mesmo no âmbito de cada segmento há diferenças. Nas artes cênicas, por exemplo, os problemas do teatro são uns, os da dança outros, diferentes dos problemas da ópera ou do circo. Isso coloca um desafio para as políticas de fomento à cultura, que serão mais eficientes se considerarem as especificidades de cada processo de trabalho (ou cadeia produtiva). Isso pressupõe conhecer todos esses segmentos e instituir mecanismos específicos para superar eventuais gargalos e fomentar as potencialidades criativas.
A proposta de alteração da lei de incentivo à cultura apresentada pelo MinC vai nesse sentido, pois cria fundos específicos para setores distintos. Os editais que criam prêmios para segmentos socioculturais ou programas específicos, estão indo na mesma direção, criando o que o ex-ministro Gilberto Gil, na sua visão abrangente, chamou de “cesta” de variados mecanismos de fomento.
4.2. Sustentabilidade das Cadeias Criativas
Pesquisas recentes indicam que a economia da cultura é uma das que mais cresce no mundo. Ela engloba as indústrias culturais (editorial, fonográfica e audiovisual); a mídia (jornais, rádio e TV); as expressões da cultura (artes cênicas, artes visuais, literatura, música, cultura popular); as instituições culturais (museus, arquivos, bibliotecas e centros culturais), os eventos, festas e exposições; outras atividades criativas como a publicidade, a arquitetura e o design (gráfico, de produtos, da moda e de interiores), além do turismo cultural. Essa economia é baseada num recurso praticamente inesgotável - a criatividade -, e tem forte impacto sobre o desenvolvimento de novas tecnologias.
O desenvolvimento da economia da cultura está relacionado ao processo de globalização, que provoca intensa estandardização de bens e serviços em escala mundial. Nessa conjuntura os produtos culturais, que têm entre suas características a singularidade, a unicidade e a raridade, tendem a valorizar-se, pois quanto mais raro um produto, maior o seu preço. Isso vale também para os sítios de valor histórico, artístico e paisagístico e para o patrimônio cultural em geral, que são fortes atrativos para as indústrias do turismo e do entretenimento.
Também influenciam no desenvolvimento econômico da cultura as características da chamada “nova economia” ou “economia do conhecimento”, na qual a ciência, a tecnologia e a capacidade de simbolizar exercem papel saliente. A produtividade dessa economia - cujos setores mais dinâmicos são o financeiro, as indústrias de computadores, softwares e das comunicações, além da biotecnologia e da nanotecnologia -, depende tanto da incorporação de capital como do investimento em pessoas e, nesse caso, Cultura e Educação cumprem função estratégica. A adoção desse conceito e o investimento em ações baseadas nas potencialidades dessa economia podem fazer da criatividade um importante vetor do desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Contudo, também deve ser assumida a realidade da produção cultural, que tem particularidades que a distinguem dos processos rotineiros e mecânicos que caracterizam a confecção da maioria dos produtos. Por ser criativo e inovador, o bem cultural pouco se coaduna com os tempos e meios de produção, distribuição e consumo das mercadorias produzidas em escala. O empreendimento cultural sempre envolve riscos e muitas vezes não gera retorno financeiro. Mesmo perseguindo fórmulas consagradas, a produção cultural nunca será totalmente previsível, podendo resultar em sucesso, mas também em fracasso de público. Por isso o incentivo estatal e as parcerias entre o poder público e a iniciativa privada, nas diversas fases de realização do bem cultural (criação, produção distribuição e consumo), sempre serão necessários à sustentação das cadeias produtivas da cultura. Essa necessidade fica ainda mais evidente quando se constata que a economia da cultura gera efeitos para além dela mesma, pois seus produtos fortalecem os vínculos de sociabilidade e identidade, criam lazer e bem-estar, contribuem com a educação e com o desenvolvimento econômico em geral.
4.3. Geração de Trabalho e Renda
Pesquisas recentes, realizadas pelo IPEA sobre a geração de emprego no setor cultural, indicam que esse segmento é um importante componente do mercado de trabalho e possui dinamismo e potencial ainda não explorado sistematicamente para gerar ainda mais empregos, renda e bens simbólicos. Considerando apenas o emprego formal, que abrange aqueles com carteira de trabalho por prazo indeterminado, estatutários, trabalhadores avulsos e por prazo determinado, o estudo constata que, no período 1994-2002, os segmentos mais dinâmicos são os relacionados às atividades de comunicação (rádio, televisão e telecomunicações), de lazer e leitura. Com menor participação aparecem as indústrias fonográficas, de cinema e audiovisual e o setor de espetáculos. Embora o emprego informal não tenha sido objeto desse estudo, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2001) indicam que a informalidade no setor cultural chega a 49%. Esse dado provavelmente está relacionado aos processos de reestruturação (incluindo terceirização) das indústrias culturais na década de 1990 (particularmente a indústria fonográfica), mas também às características próprias de vários segmentos da cultura, que são irredutíveis aos meios de reprodução ampliada e se organizam de forma colaborativa, voluntária e familiar.
No período considerado, um dado que chama a atenção refere-se ao crescimento do emprego formal nos estabelecimentos culturais de menor porte (até 99 empregados), enquanto os de grande porte (500 ou mais empregados) eliminaram vagas. Esses dados sugerem que uma política de fomento às micro, pequenas e médias empresas culturais pode incrementar a geração de empregos e também contrabalançar as tendências monopolistas da grande indústria cultural.
:: Eixo V – “Geração e Institucionalidade da Cultura
Foco: fortalecimento da ação do Estado e da participação social no campo da cultura
5.1. Sistemas Nacional, Estaduais e Municipais de Cultura
Pode-se dizer que a política cultural, comparada a outras políticas públicas, como saúde e educação, ainda está na infância, no que se refere à estrutura institucional, formação técnica de gestores, legislação complementar e existência de uma base de dados e indicadores que possibilita o planejamento de longo prazo.
Essa situação pode ser atribuída, em parte, a uma indefinição a respeito do papel do Estado na gestão da Cultura. Qual a função e o espaço de atuação do poder público? Como ele pode agir garantindo ao mesmo tempo a liberdade de criação e o pleno exercício dos direitos culturais?
A resposta a estas questões deve ter como ponto de partida a compreensão de que a cultura é um direito básico dos cidadãos e um importante vetor de desenvolvimento. Por isso deve ser tratada como área estratégica. Cabe ao Estado, sem dirigismo e interferência nos processos criativos, e com ampla participação da sociedade, assumir seu papel no planejamento e fomento das atividades culturais, na preservação e valorização do patrimônio cultural e no estabelecimento de marcos regulatórios para a economia da cultura.
A atuação do Estado não substitui o papel do setor privado, com o qual deve, sempre que possível, atuar em parceria e buscar a complementaridade das ações. No entanto, cabem ao Estado responsabilidades intransferíveis, como garantir o acesso universal aos bens e serviços culturais e proteger e promover a diversidade cultural, com ênfase nas referências culturais minoritárias e nas que estão sob ameaça de extinção.
Desde a promulgação da Constituição, o Estado brasileiro, a fim de tornar efetivo o princípio da cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 23 da CF/88), vem desenvolvendo esforços no sentido de fortalecer as políticas públicas, por meio da organização de Sistemas que vinculam as ações dos distintos entes federados. A concretização do federalismo cooperativo constitui uma aposta estratégica frente à escassez de recursos públicos, à diferenciada capacidade gerencial e fiscal dos entes federados e às profundas desigualdades sócio-econômicas regionais.
A experiência da organização sistêmica demonstrou que o estabelecimento de princípios e diretrizes comuns, a divisão de atribuições e responsabilidades, a montagem de um esquema de repasse de recursos e a criação de instâncias de controle social asseguram maior efetividade e continuidade das políticas públicas. Esses são os objetivos pretendidos pelo Sistema Nacional de Cultura (SNC).
Um sistema é um conjunto de partes interligadas que interagem entre si, mas ele não é a simples soma das partes, pois tem certas qualidades que não se encontram nos elementos concebidos de forma isolada. Sendo assim, para definir o Sistema Nacional de Cultura é necessário dizer quais partes o compõem, como elas interagem e quais são as propriedades específicas que lhe dão unidade. Considerando o debate ocorrido nos últimos anos, as experiências acumuladas na área da cultura e em outras políticas públicas, conclui-se que o SNC reúne a sociedade civil e os entes federativos da República - União, Estados, Municípios e Distrito Federal -, com suas respectivas políticas e instituições culturais. As leis, normas e procedimentos definem como interagem as suas partes e a Política Nacional de Cultura e o Modelo de Gestão Compartilhada são as qualidades específicas que lhe dão unidade.
É importante ressaltar que já está em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional que institui o Sistema Nacional de Cultura (PEC nº 416/2005), bem como outras propostas de emendas e projetos de leis diretamente relacionados, tais como a PEC nº 150/2003, que destina recursos à cultura com vinculação orçamentária, a PEC nº 236/2008, que propõe a inserção da cultura no rol dos direitos sociais (art. 6º da CF/88) e os projetos de lei que instituem o Plano Nacional de Cultura e o Programa de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic).
Essa pauta fortalece a necessidade de se institucionalizar com urgência o SNC, a fim de organizar as políticas culturais, combinando o respeito à autonomia dos entes com a necessária interdependência e cooperação. A realização das conferências municipais, estaduais, distrital e nacional de cultura constitui um momento propício ao debate e à mobilização da sociedade para impulsionar a aprovação desses instrumentos legais.
5.2. Planos Nacional, Estaduais, Municipais, Regionais e Setoriais de Cultura
Em geral, os sistemas vêm sendo organizados com base no tripé formado por Conselho, Plano e Fundo, além, é claro, dos órgãos gestores e das conferências. Desde 2003, 18 conselhos nacionais foram criados e 6 reestruturados. Das 100 conferências nacionais e internacionais realizadas desde 1941, 61 foram no período 2003-2008.
Os planos, elaborados pelos conselhos a partir das diretrizes definidas nas conferências, têm por finalidade o planejamento de longo prazo e por isso são instrumentos muito importantes para a institucionalização das políticas governamentais, transformando-as em políticas de Estado. Os Conselhos também são fundamentais para o funcionamento dos sistemas. São instâncias colegiadas permanentes, de caráter consultivo e deliberativo, integrantes da estrutura básica do órgão responsável pela política pública, em cada esfera de governo. Conforme as diretrizes apontadas pela 1ª Conferência Nacional de Cultura, a composição dos Conselhos de Política Cultural deve incluir, no mínimo, 50% de representantes da sociedade civil, eleitos democraticamente. Sua principal finalidade é atuar na formulação de estratégias e no controle da execução das políticas.
5.3. Sistema de Informações e Indicadores Culturais
Todas as políticas públicas necessitam, para seu planejamento, de informações e indicadores a respeito da realidade sobre a qual devem atuar. A política cultural é, provavelmente, uma das que mais carecem de dados, embora esforços nesse sentido tenham sido realizados nos últimos anos. Atualmente está em curso a implantação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), que objetiva identificar todos os sistemas já existentes nos estados e municípios e estabelecer as bases tecnológicas para conectá-los, de forma que possam atuar interativamente. Isso possibilitará a produção de indicadores nacionais aplicáveis, de forma coerente, aos processos de formulação e implantação de políticas culturais na União, Estados e Municípios. Acompanham as ações tecnológicas atividades relacionadas à capacitação técnica de pessoas para a formação e atualização de equipes vinculadas à geração, tratamento e armazenamento de dados e informações culturais.
O SNIIC terá como objetivos principais o mapeamento, a organização e a divulgação das atividades culturais brasileiras, incluindo informações sobre estrutura (artistas, equipamentos culturais, grupos, eventos), gestão (órgãos públicos, conselhos, fundos, legislações, orçamentos e editais), financiamento, economia da cultura, patrimônio material e imaterial, entre outras. Serão destacadas, prioritariamente, as informações sobre artes cênicas, artes visuais, audiovisual, música, literatura e cultura popular. A adesão dos órgãos estaduais e municipais de cultura, bem como dos possíveis parceiros privados e não-governamentais, ocorrerá paulatinamente, durante o processo de desenvolvimento e implantação do SNIIC.
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¹ Esse texto foi feito por várias mãos, corações e mentes. Utilizou-se de uma série de documentos do Ministério da Cultura, relatórios do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), documentos internacionais sobre direitos humanos e contribuições de vários autores. A organização e redação final são de responsabilidade do pesquisador Bernardo Novais da Mata Machado.
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