Por César Gama *
O governo de Sergipe quer instalar uma usina nuclear no meio do São Francisco, rio que abastece com água potável quase 60% da população sergipana. Aliás, uma só não, o governo federal deseja implantar duas usinas às margens do rio. E uma delas o governador Marcelo Deda e o deputado federal Albano Franco querem deixar em terras sergipanas, como uma espécie de presente de grego da União aos sergipanos: um verdadeiro elefante branco potencialmente perigoso, travestido de Cavalo de Tróia para inimigo nenhum botar defeito.
A grande questão que a população sergipana precisa colocar neste momento é por que deve permitir que um governo marcado pela inépcia e irresponsabilidade, manipulado por uma predatória elite econômica que realmente governa, a “presenteie” com futuro tão sombrio e inseguro para seus filhos e netos. Com menos de cinqüenta anos de vida pela frente, dificilmente essa gente ambiciosa assistirá aos malefícios do legado de inconseqüências que a sua ganância desenfreada por dinheiro e poder provocará ao planeta terra e às próximas gerações de seres humanos.
:: A caixa de fezes lacrada no interior do poço de água potável
Vamos a uma pequena analogia, um exercício de lógica para testar seu senso comum. Imagine que você mora numa pequena casa sem rede de esgotos e precisa instalar uma fossa séptica. Há outro problema: não há espaço no imóvel para instalar a fossa, exceto se você colocá-la lado a lado com o único poço artesiano que lhe fornece a água para beber. Já haviam lhe dito ser perigoso colocar a caixa da fossa ao lado do reservatório de água potável. Há risco de contaminação. Mas o instalador da fossa afirma que não há nada com o que se preocupar, alegando que o fabricante da caixa coletora de resíduos – que quer vender seu peixe - garante ser ela completamente vedada.
Surgem as indagações: você conhece algum artefato ou produto fruto da manufatura ou industrialização humana que dure uma eternidade ou que pelo menos seja infalível pelo resto da vida? Você arriscaria instalar a caixa de excrementos no meio da água que você bebe, acreditando que a tecnologia humana conseguiria torná-la indevassável e livre de vazamentos por todo o tempo? E, a partir daí, consumiria tranquilamente a água sem a imaginar a possibilidade de surgimento de uma gigantesca e próspera colônia de coliformes fecais no copo que você leva à boca todos os dias? O simples senso comum, sem precisar do conhecimento científico, já o deixaria de orelha em pé em relação à idéia tão extravagante.
Mas nem mesmo isso, o mero senso comum, tem servido de parâmetro para que o presidente Lula, o governador Marcelo Deda e o deputado Albano Franco analisem melhor a situação que pretendem provocar a Sergipe. Parecem mesmo dispostos a instalar uma caixa supostamente inviolável e cheia de resíduos perigosos bem no meio do reservatório da água que você consome. Com uma grande diferença em relação à caixa de fezes da analogia: no caso de um acidente com a caixa de excrementos, você só teria que interromper o consumo da água temporariamente, tratar o reservatório com alguns produtos químicos e esperar algum tempo até que os resíduos orgânicos e microorganismos patogênicos pudessem ser destruídos ou naturalmente processados pelo ambiente. Duraria algum tempo, mas você assistiria ao processo de recuperação do poço ainda em vida.
No caso da caixinha surpresa que esse pessoal deseja instalar no São Francisco, na hipótese de um acidente com vazamento de resíduos radioativos, você só terá que esperar pacientemente pelos próximos, dez mil anos, talvez, para então voltar a consumir a água do rio.
:: Só há 100% de segurança na certeza de que um dia você morre
Quanto ao argumento dos defensores do projeto, que alegam ser a usina completamente segura e livre de acidentes, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, tudo na vida, cedo ou tarde, é passível de mau funcionamento ou de acidente. O homem não construiu ainda nenhuma máquina infalível, nenhuma estrutura perfeita, nada que funcione cem por cento indefinidamente. Em segundo lugar, a natureza está sempre a postos para demonstrar que além da incrível e tosca falibilidade humana, temos que conviver eternamente com todo tipo de fenômeno natural que, queiram ou não, desgastam continuamente qualquer coisa que exista: dos seres humanos aos animais, das rochas minerais ao aço, dos plásticos aos diamantes. Chuvas, sol, marés, ventos e todo tipo de alterações cosmológicas, meteorológicas e geológicas naturais estão aí a provar que perenidade não existe.
Por fim, é preciso lembrar o fator humano na operação dos equipamentos. O erro humano, em quaisquer circunstâncias, é a variável mais comum e menos controlável no desenvolvimento de todo projeto tecnológico.
Se errar é humano; se os acidentes acontecem sempre; se a lei física da entropia – a da completa e continuada desagregação e destruição da matéria - é regra avassaladora e definitiva; por que diabos depositaríamos, em meio a água que bebemos, uma usina radioativa que precisará ser mantida e monitorada por séculos sem fim, para não corrermos o risco de um acidente que contamine o ambiente por milhares de anos? Por conta da absoluta insensatez humana, sempre que a ganância fala mais alto.
Em sua esclarecedora obra acadêmica, Ciência Ambiental, na sua 11ª. Edição, o presidente da Earth Education Research, Tyller Miller JR, assinalava que, em 2004, os 439 reatores nucleares instalados em 30 países produziram apenas 6% da energia comercial do mundo e 16% da eletricidade, concluindo que “de 1989 para cá a produção de energia nuclear teve aumento ínfimo e hoje é a fonte energética que menos cresce(...) (...) Desde 1978 não existem solicitações de nenhuma usina nuclear nos Estado Unidos e todas as 120 solicitadas, desde 1973, foram canceladas”. Tyler Miller enumera as causas para esse quadro: “algumas dessas razões são os custos de construção excedentes em bilhões de dólares, os custos de operação mais altos e um maior número de falhas do que o esperado”, fazendo cair por terra a idéia da segurança absoluta.
Ainda em “Ciência Ambiental” Miller complementa: “(...) a energia nuclear produz materiais radioativos que devem ser armazenados com segurança por 10 mil a 240 mil anos, até que sua radioatividade caia para níveis seguros. Além disso, quando o reator nuclear chega ao fim da sua vida útil (depois de 40 a 60 anos), não pode ser simplesmente fechado e abandonado como uma usina de queima de carvão. A grande quantidade de materiais altamente radioativos que contém deve ser mantida longe do meio ambiente por milhares de anos”.
Já no seu mais recente livro “Os Senhores do clima”, o escritor, ambientalista e cientista australiano Tim Flannery simplifica o significado de uma usina nuclear, definindo-o com muita clareza ao fazer prevalecer seu lado verdadeiramente sombrio: “ao discutir a energia nuclear como meio de gerar eletricidade, devemos ter em mente que as usinas nucleares nada mais são do que máquinas complicadas e potencialmente perigosas para ferver a água que cria o vapor usado para mover as turbinas”.
Ao dissertar sobre estes perigos, Flannery lembra o caso de Chernobyl, o maior desastre nuclear da história, ocorrido em 1986, onde mais de 300 mil pessoas já morreram até agora e onde duas décadas depois do acidente “as conseqüências continuam crescendo”. Ele expõe o problema com clareza: “o câncer de tireóide é uma doença rara, com uma criança em um milhão desenvolvendo a doença. Mas 1/3 das crianças que tinham menos de quatro anos quando foram expostas à exposição de Chernobyl terão essa doença. Sete por cento ( cerca de 3,3 milhões de pessoas) da população da Ucrânia sofrem de doenças como resultado do derretimento da usina, enquanto que na vizinha Bielorússia, que recebeu 70% da precipitação radioativa, a situação ainda é pior., 25% das terras agrícolas foram colocadas permanentemente fora de produção e cerca de mil crianças morrem por ano de câncer da tireóide”.
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*César Gama é jornalista, psicanalista, professor, formando em Biologia, bacharelando em Filosofia e membro-voluntário do Greenpeace. Este artigo foi elaborado com dados de sua monografia de conclusão do curso de Licenciatura, intitulada O estorvo da Energia Nuclear: ou de como a suposta ‘energia limpa’ é tão cara ao ambiente.
** Artigo originariamente publicado na edição domicinal, de 22 de março de 2010, do jrornal Correio de Sergipe.
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