Mas os novos tempos não são alentadores. A ordem societária do neoliberalismo não comporta projetos coletivos e utopias que ameacem os seus axiomas. Solicita relações fragmentadas, atomizadas. Uma identidade de espelho partido. Em meio à circulação indiferente de códigos e à autonomia das coisas em relação às idéias, a inteligibilidade do mundo se evapora. Resgatá-la como totalidade, ocultando as fraturas permanentes da sociedade de classes, é, como destacou Guy Debord, função do espetáculo. Urge dar às pessoas o simulacro do que lhes falta na vida real. Quando a anomia se transmuta em regra, os dispositivos técnico-digitais agenciam uma sociabilidade tão precária quanto frenética. Nunca se buscou tão pouco, nunca foram tantos os sites de busca.
É nesse contexto, de vazio político-filosófico, que surgiu a febre do Orkut, ferramenta ligada ao império Google. Definido como site de relacionamentos, abriga uma contradição em termos: a expressão ‘comunidades virtuais’. O que seriam tais entidades? Não-lugares que primam pela ausência de interação? Espaços que independem da subjetividade dos seus membros? Falsas constelações sem imaginário e história? Agrupamentos que se definem por identidades líquidas?
Pergunta ao usuário: o que é pertencer a uma ‘comunidade do Orkut’? Seria acessar o hábitat do fetiche da mercadoria? E se houver algum imprevisto do tipo “bad, bad server. No donut for you”? Sem problemas, a reprodução social passa pela infantilização eterna. Criança não quer política. Contenta-se com docinho. Em seguida, vieram outros sites de relacionamento. Todos com a promessa de uma estruturação mínima, de conexões sem risco de aprofundamento e contato. O único risco é um “bug” indesejável. Algo que, paradoxalmente, possa restituir a magia primitiva da linguagem.
Exacerbando as tendências comportamentais da sociedade contemporânea, o Orkut acabou por produzir o oposto do que prometia: a capacidade de resgatar e ampliar o círculo de amizades. Na verdade, o que se observa é uma compulsividade acumulativa.
O que era um processo envolvendo concordância de sentimentos, apreço pelo outro, relação reinventada diariamente, torna-se, no universo do Google, uma mera operação de adição. Ostentação curricular de prestígio social. Competitividade deslavada. Com certificado de qualidade que vem sob a forma de “depoimento”. Nunca a solidão agregou tanta euforia. E uma fantástica coleção de retratos. A impossibilidade constitutiva de se ter mais de uma centena de amigos é um detalhe a ser ignorado. Deveriam ter aprendido com o “Show de Truman” que o horizonte termina na parede.
Bons os tempos que os amigos eram raros e cultivados. Hoje, como simulacros, são adicionáveis e devem ser guardados do lado direito da tela. E pouco importa o que digam o tempo e a distância. A canção deve ser esquecida. Nunca fomos tão felizes.
Em tempo:o autor deste artigo tem perfil no Orkut. Para melhor vivenciar a dinâmica, aceitou pedidos de adição e escreveu testemunhos. Visitou algumas das ditas comunidades e selecionou algumas para compor o perfil do usuário. Jamais participou de nenhuma, posto que o significado mais exato da palavra participação e a proposta Google são incompatíveis.
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* É professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil
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